PRIMÓRDIOS

Nunca me esqueço dos meus primeiros dias no Serviço Público, quando, em julho de 43, comecei no Arquivo Nacional, na modesta condição de tarefeiro.
Ganhava um pró-labore por serviço que prestava à PUC no expediente da tarde, quando, de repente, me chamam ao telefone. Era minha irmã Carmem, professora do Colégio Sacre Coeur, em Copacabana, que me informava ter uma freira de lá arranjado um emprego para mim no Arquivo Nacional, cujo diretor, Dr. Eugênio Vilhena de Moraes, ex-Inspetor Escolar no Colégio, lhe pedira a indicação de mais uma pessoa. Algumas, já indicadas anteriormente, lá prestavam seus serviços.
E assim, dois ou três dias depois, estava eu no velho prédio da Praça da República, 26.
O Diretor leu o cartão de apresentação que eu levava, não entendeu muito bem e me perguntou:
- Então, quando vem a sua irmã?
Quase lhe respondo:
- Minha irmã não vem. Quem vem sou eu. Aliás, já vim!
Mas me limitei a explicar melhor os dizeres do cartão e, no dia seguinte já estava fazendo exame no Serviço Médico do Ministério da Justiça, que era em um prédio na esquina de Evaristo da Veiga com Senador Dantas.
Dias depois, já tinha tomado posse e estava bem adaptado ao serviço, o que nunca me tinha acontecido até então.
Trabalhava na Secretaria, onde éramos umas três ou quatro pessoas, além do Secretário Devanir de Lima Gil, mineiro de Belo Horizonte, se não me engano, e que se tomou de amores por mim e me ajudava e fazia de tudo para me projetar.
Certa vez, diante do Diretor que reclamava de um trabalho que lhe fora entregue, virou-se para mim e foi enfático:
- É melhor você descer e fazer você mesmo, porque assim já fica bom de uma vez.
Levei um susto, mas acho que saiu tudo bem.
Estive nessa função por alguns meses, de setembro de 43 a junho do ano seguinte.
Desse período o que me lembro mesmo é da proteção do Secretário, que gostava realmente de mim e me ajudava de tudo que era jeito.
Não consigo me esquecer também de minhas colegas, tarefeiras, todas mulheres, algumas até bem jeitosinhas para os padrões da época, mas isoladas numa sala, protegidas dos olhares profanos da turba ignara.
Duas principalmente se destacavam das demais. Muito bem vestidas e charmosas, chegando para o trabalho às onze horas da manhã sob a esfuziante canícula do Campo de Santana, fazendo o deleite do servente Pimenta, por razões óbvias cognominado Boca Larga, que me confidenciava seu respeitoso deslumbramento ante a chegada triunfal.
Eu, por outro lado, mesmo após sessenta anos decorridos, não consigo esquecê-las, sempre juntas as duas, lindas, lindas, apresentando-se para a labuta diária, cônscias da salvação do Brasil; eram tempos de guerra e já havia tropas brasileiras nos campos de batalha da Europa.
Ainda hoje as vejo de quando em vez em fotos de jornal, falando sempre de assunto ligado às artes, filhas que são de renomado pintor.
Neste meio tempo, fiz concurso para revisor da Imprensa Nacional (Av. Rodrigues Alves, 1). Passei em sexto lugar, mas demorei à beça para tomar posse.
O concurso foi em agosto de 43, mas só comecei a trabalhar em julho de 44. A Exposição de Motivos, aprovada pelo Presidente da República, era dos últimos dias de 43 e saiu do Palácio do Catete (Sede do Governo), exatamente no dia 31 de dezembro. Nos primeiros dias do novo ano foi publicada no Diário Oficial e ... sumiu.
Passado algum tempo, comecei a correr atrás do processo. Levantei o dia da saída dele do Catete. Localizei-o no Palácio Monroe, onde era o Gabinete do Ministro Marcondes Filho, da Justiça. Tinham o registro da remessa para a Imprensa. Me atrapalhei, perdi a pista novamente.
O Diretor do Arquivo me deu um cartão para o Dr. Brito Pereira, da Imprensa, que nada pôde fazer, dependia da chegada da documentação para o processamento da admissão.
E nada da papelada chegar!
Recomecei minha "via crucis" através do DASP. A Divisão de Orientação era no 6° andar do Ministério da Fazenda. O Diretor era o Dr. Lúcio Bittencourt, que foi depois Deputado Federal e veio a falecer em desastre de aviação. Não consegui falar-lhe pessoalmente, mas deixei meu problema nas mãos do seu secretário, que na semana seguinte me dava a solução.
- O Dr. Lúcio já entrou em contato com o Ministério da Justiça e vai autorizar sua nomeação com base no próprio "Diário Oficial".
Dias depois, já tomava posse e percebi que o grande erro tinha sido meu. Mal me apresentei ao Diretor da Imprensa com o "Diário Oficial" na mão, ele mandou buscar o original da publicação no arquivo e qual não era o documento? Em processo encapado, numerado, tudo direitinho, a Exposição de Motivos e o "autorizo" do Presidente Vargas.
O documento chegara à Imprensa justamente naquele 31 de dezembro, possivelmente já no fim do expediente. Em vez de ser enviado ao Serviço de Pessoal no primeiro dia útil para os procedimentos da posse, foi mandado para a redação que ainda estaria funcionando naquela hora e foi sem mais nem menos publicado no Diário Oficial, na íntegra, e recolhido ao Arquivo de Originais de onde certamente só sairia no dia do Juízo Final.
O Diretor me explicou que se, quando o procurei anteriormente, tivesse levado o D.O., ele teria com a mesma facilidade localizado o processo, como o fizera naquele momento, mas fui sem nada, só com o cartão de apresentação. Eu era jovem ... Vinte anos ... Era exigir muito.
Minha vida mudou completamente. A Imprensa Nacional era uma senhora repartição, com tudo o que se poderia desejar. Em um prédio de construção quadrangular, com um pátio interno como as antigas construções jesuíticas do período colonial, e fora projetado exatamente para sede do órgão.
Ali havia, no último dos quatro andares, a casa do Diretor, e nos pavimentos inferiores, enfermaria, gabinete médico, dentário, todo o maquinário de indústria gráfica, linotipos, impressoras, rotativas de último tipo, recém-importadas, restaurante do SAPS a Cr$ 2,00 a refeição de ótima qualidade, além de obviamente salas para a revisão, redação e instalações para as atividades burocráticas, como serviço de pessoal, contabilidade, administração.
Detalhe: todo mundo uniformizado com jaleco de tergal azul e bolso do lado esquerdo à altura do peito, bordado com as iniciais "IN". A cor de cada monograma indicava a lotação do servidor: amarelo redação, laranja revisão, roxo pessoal e assim por diante.
Naquela época, em que o servidor público era prestigiado, a Imprensa Nacional era o supra sumo de eficiência e padrão de instalações. Só faltava ar refrigerado, que não havia ainda a não ser nas grandes e sofisticadas salas de cinema de então: São Luiz, Plaza, Olinda, Metro Passeio, Metro Tijuca, Astória etc.
A revisão funcionava de oito da manhã à meia-noite e meia, em diversos turnos de cinco horas, que se revezavam dentro dos melhores padrões das normas de trabalho para este tipo de atividade.
Estive lá até o último dia do ano de 1946, quando me afastei para tomar posse no IBGE no cargo de Oficial de Administração, que conquistara por concurso, em 1945.
Lá trabalhei por quarenta e tantos anos, me aposentando às vésperas de completar cinqüenta anos de serviço.
Mas isto é uma longa e gloriosa história que ficará para mais tarde.

Comentários

  1. Vozinho.
    Estou adorando poder desfrutar de suas histórias e contos de um passado tão interessante e misterioso para nós. Fico muito feliz em poder ler suas histórias e de certa forma participar dela.
    Fico curiosa quanto aos costumes da época, vestimentas, cabelos, etc. Seria interessante o senhor expressar a sua visão sobre essa mudança da moda ao longo dos tempos.
    Beijos da fã catarina Dan Dan

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